Calf Note 207 – Leite de descarte para bezerros: oportunidades e desafios

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Traduzido por: Paula Tiveron, Sandra Gesteira e Rafael Azevedo

Introdução

Leite de descarte, também chamado de “leite de hospital” e outros nomes coloquiais, é o leite produzido por vacas leiteiras que não é adequado para venda. O leite de descarte pode ser produzido por vacas imediatamente após o parto ou por vacas com infecções mamárias ativas ou tratadas com antibióticos. A maioria dos antibióticos tem intervalo de segurança em que o leite possa ser descartado por um tempo. Iremos nos referir a este produto como “leite de descarte”, o que implica que o produto não é adequado para consumo humano.

O leite de descarte é, por natureza, uma mercadoria variável. A quantidade de leite de descarte produzido depende do número de vacas que pariram e da produção de colostro, e do número de vacas sendo tratadas. Em pelo menos um estudo (Moore et al., 2009), algumas amostras de leite de descarte eram muito baixas em sólidos (<7%), indicando que as amostras estavam contaminadas, provavelmente com água de lavagem da sala de ordenha.

Composição

A composição de nutrientes do leite de descarte pode variar do leite integral, dependendo da contribuição do colostro e do leite de transição (que aumenta sólidos, proteínas e gorduras) e água (a contaminação por procedimentos de lavagem diminui todos os nutrientes). Moore et al. (2009) relataram que o leite de descarte de fazendas na Califórnia teve média de 11,2% de sólidos, o que foi significativamente diferente do teor médio de sólidos no leite comercializado (12,5%).

Tempini et al. (2018) coletaram 25 amostras de leite de descarte de fazendas leiteiras na região Central do Valley, na Califórnia, Estados Unidos. Essas amostras foram então analisadas quanto ao teor de nutrientes e presença de resíduos de antibióticos. Os resultados dos dados de composição nutricional estão na Tabela 1. A grande variedade de nutrientes sugere que os bezerros alimentados com leite de descarte podem sofrer oscilações na ingestão de nutrientes, mesmo que a mesma quantidade de líquido seja fornecida todos os dias.   

Altas contagens de bactérias totais (contagem padrão em placas) nessas amostras provavelmente são o resultado da falta de refrigeração do leite de descarte durante a coleta e o armazenamento antes do fornecimento. Um critério importante ao considerar o uso de leite de descarte é a falta de consistência frequente observada na composição desse produto. Importante “regra de ouro” da criação de bezerros é que “os bezerros desejam a consistência”. Inconsistência na composição do leite ou das práticas alimentares pode resultar em baixo desempenho. 

Hill et al. (2008) compararam o fornecimento do mesmo volume ou quantidade variável do mesmo sucedâneo. Os pesquisadores usaram duas fórmulas: 27/17 (PB/gordura) semelhante a fórmulas comerciais usadas nos EUA e a segunda fórmula 27/31 projetada para ser semelhante ao leite integral com base na matéria seca. Os sucedâneos foram fornecidos em quantidade fixa (681 g/dia) ou em uma taxa que variava de dia para dia, mas em média 681 g/dia durante a semana. A quantidade oferecida variou de 545 a 817 g/dia, dependendo do dia da semana. Os bezerros foram alimentados com uma porcentagem fixa de MS (14,8%), portanto a quantidade de líquidos recebidos diariamente variou. No entanto, cada bezerro recebeu a mesma quantidade de nutrientes ao final de cada período de 7 dias. Os bezerros foram desaleitados neste estudo aos 28 dias. Bezerros alimentados com taxa fixa de sucedâneo (a mesma quantidade todos os dias) cresceram mais rapidamente (Tabela 2), ingeriram mais calorias e tiveram maior eficiência alimentar antes do desaleitamento. Os efeitos sobre o consumo inicial e o GMD foram mantidos mesmo após o desaleitamento.

Contaminação microbiana e pasteurização

O leite de descarte é, por sua natureza, mercadoria variável. Não só a composição dos nutrientes pode variar, mas também o grau de contaminação microbiana, devido à mastite e outros organismos, que podem ser transmitidos das vacas para os bezerros pelo produto. As precauções para o uso de leite de descarte não pasteurizado foram descritas por Elizondo-Salazar e Heinrichs (2007) e estão descritas na Figura 1.

A pasteurização do leite de descarte é necessária. O leite de descarte pode conter organismos potencialmente infecciosos e tem sido implicado na transmissão vertical de numerosos organismos causadores de doenças, incluindo o Cryptosporidium parvum, Mycoplasma bovis e Mycobacterium paratuberculosis, entre outros.

A pasteurização é um processo pelo qual o leite é aquecido a temperatura definida por um tempo específico para reduzir a carga microbiana. Por exemplo, um processo comum de pasteurização na fazenda (pasteurização lenta) é aquecer o leite a 63-65°C e manter a temperatura por 30 minutos. Pasteurização a alta temperatura/curto período de tempo (71,7°C por 15 segundos) também é eficaz. Quando o leite é pasteurizado corretamente, a contagem de bactérias potencialmente patogênicas é reduzida, incluindo Mycobacterium paratuberculosis (responsável pela doença de Johnes), Salmonella, e Mycoplasma (Butler et al., 2000; Stabel et al., 2004).

Pesquisas realizadas no final dos anos 90 (Jamaluddin et al., 1996) relataram que a pasteurização na fazenda reduziu a diarreia, pneumonia e melhorou o ganho de peso, e o uso de leite não pasteurizado aumentou o risco de transmissão de doenças (Selim and Cullor, 1997). Obviamente, o manuseio pós-pasteurização do leite de descarte usado é essencial. Pasteurização não é esterilização, e o crescimento de bactérias é possível se o leite residual for armazenado por longos períodos (Elizondo-Salazar et al., 2010).

As considerações para os procedimentos de pasteurização bem-sucedidos foram publicadas por Elizondo-Salazar e Heinrichs (2007) e estão na Figura 2. Nem todas as pesquisas demonstraram benefícios na pasteurização de leite de descarte. Por exemplo, Edrington et al. (2018) relataram pouca diferença entre a prevalência de Salmonella em amostras fecais de bezerros em aleitamento alimentados com leite de descarte pasteurizado ou não pasteurizado. Um total de 68% e 69% das amostras fecais coletadas apresentaram resultado positivo para uma das várias espécies de Salmonella, respectivamente.

Aly e Thurmond (2005) relataram que bezerras com mães soropositivas tinhas 6,6x mais chances de serem infectadas (soropositivas) em comparação com bezerras de mães soronegativas. Além disso, os 84,6% de soropositividade foram devidos a nascer de mãe soropositiva e 15,4% a outras exposições, como contato com água do flushing que continha fezes de animais adultos e foi ingerida pelos bezerros.

Nos Estados Unidos, o Sistema Nacional de Monitoramento da Saúde Animal (NAHMS) do Departamento de Agricultura avaliou as práticas de alimentação de bezerros durante pesquisa nacional em 2014-2015 (Urie et al., 2018). Os pesquisadores determinaram o tipo de leite fornecido aos bezerros. Os pesquisadores relataram que o tipo de dieta líquida mais comum era o leite integral ou de descarte, representando 40,1% de todos os bezerros (n = 2.545), enquanto 34,8% dos bezerros receberam apenas sucedâneo, e 25,1% receberam combinação dos dois. Quando expressos como % de operações, 43,3% das fazendas forneciam leite integral ou de descarte, 38,5% forneciam apenas sucedâneo e 38,5% das fazendas forneciam combinação dos dois. De todas as propriedades que forneciam leite integral e de descarte ou uma combinação dos dois, 36,5% pasteurizavam o leite e 21,2% avaliavam a contagem bacteriana do leite (Urie et al., 2018). Claramente, existe uma oportunidade de melhorar o leite de descarte na fazenda e reduzir o risco de transmissão de doenças para bezerros em aleitamento.  

Suplementação de leite residual

Embora o leite (leite integral ou descarte) seja normalmente considerado um alimento “perfeito”, existem alguns desequilíbrios em comparação com as exigências nutricionais publicadas (Tabela 3). Nos esquemas de manejo em que os bezerros são alimentados com quantidades limitadas (400-500 g de MS/dia) de leite por curto período (<42 dias), os efeitos nutricionais desses desequilíbrios são geralmente limitados. Isto é particularmente verdade devido ao oferecimento do concentrado para as bezerras. No entanto, estratégias mais modernas de alimentar as bezerras com maiores quantidades de leite por longos períodos podem exacerbar as deficiências nutricionais do uso do leite de descarte.

A suplementação do leite de descarte com vitaminas e minerais e a alteração da proporção proteína: energia demonstraram melhorar o crescimento e a eficiência alimentar (Glosson et al., 2015; Figura 3). Vários produtos comerciais estão disponíveis para alterar a proporção proteína:energia nos EUA (geralmente, aumentando a quantidade de proteína na mistura), e adicionar vitaminas e minerais essenciais. Esses produtos também podem conter aditivos funcionais que suportam a resposta imune (componentes de levedura, anticorpos, óleos essenciais) e reduzem o risco de doença.

Resíduos de antibióticos

Quando o leite de descarte é obtido de vacas tratadas com antibióticos, a quantidade de resíduo de antibiótico secretada no leite residual pode ser alta o suficiente para exercer influência na microbiota intestinal, no bezerro ou em ambos. Um risco significativo é o desenvolvimento de bactérias resistentes a antibióticos no intestino de bezerros alimentados com leite de descarte contendo antibióticos. 

Um risco significativo do uso de leite de descarte é a transmissão potencial de resíduos de antibióticos que podem causar resistência a antibióticos em bactérias nos bezerros alimentados com leite de descarte. Essas bactérias resistentes a antibióticos serão então muito mais difíceis de tratar com antibióticos disponíveis e dificultarão o manejo da fazenda em geral.

Evidências recentes (por exemplo, Randall et al., 2014; Maynou et al., 2017) sugerem que o fornecimento leite de descarte promove a presença de bactérias resistentes no intestino e nas vias respiratórias de bezerros leiteiros. Assim, organizações em algumas partes do mundo recomendam o descarte do leite contendo resíduos de antibióticos. Por exemplo, no Reino Unido, a organização agrícola sem fins lucrativos Aliança de Uso Responsável de Medicamentos na Agricultura (RUMA) publicou recentemente a seguinte declaração de posição sobre o uso de leite de descarte em fazendas leiteiras:

“O leite de descarte (excluído o colostro e leite de transição) de vacas durante o período de carência legal de antibióticos não deve ser administrado aos animais jovens. Com base nas evidências atuais, recomenda-se que uma solução prática para descarte na fazenda seja o descarte desse leite no poço de chorume. A RUMA incentiva mais pesquisas sobre opções de descarte desse leite para identificar alternativas práticas e entender melhor as possíveis interações ambientais associadas ao descarte por essa rota.”  (https://www.ruma.org.uk/ruma-position-on-feeding-waste-milk-to-calves/).

A questão de saber se antibióticos no leite de descarte pode afetar o desenvolvimento ruminal ou o crescimento de bezerros foi abordada por um manuscrito de Li et al. (2019). Os autores concluíram que antibióticos no leite de descarte não tiveram efeito significativo no crescimento de bezerros. Contudo, houve alterações na microbiota ruminal e nas concentrações de AGV no rúmen. 

Resumo

O leite de descarte é usado há muitos anos como fonte viável de nutrição para bezerros jovens. Embora o conteúdo nutricional do leite de descarte muitas vezes espelhe o do leite comercializado, existem muitos riscos associados ao seu uso – isto é, variação no conteúdo de nutrientes, possíveis patógenos e resíduos de antibióticos. No futuro o uso do leite de descarte pode ser limitado, seja pela regulamentação do governo ou pela demanda do consumidor, para minimizar o risco de desenvolver mais bactérias resistentes a antibióticos no ambiente. A pasteurização do leite de descarte é essencial para reduzir o risco de transmissão de organismos patogênicos aos bezerros.

Referências

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Butler, J. A., S. A. Sickles, C. P. Johanns, and R. F. Rosenbusch. 2000. Pasteurization of discard mycoplasma milk used to feed calves: Thermal effects on various mycoplasma. J. Dairy Sci. 83:2285–2288.

Edrington, T.S., J.A.G. Buitrago, G. R. Hagevoort, G. H. Loneragan, D. M. Bricta-Harhay, T. R. Callaway, R. C. Anderson, and D. J. Nisbet. 2018. Effect of waste milk pasteurization on fecal shedding of Salmonella in preweaned calves. J. Dairy Sci. 101:9266–9274.

Elizondo-Salazar, J. A., C. M. Jones, and A. J. Heinrichs. 2010. Evaluation of calf milk pasteurization systems on 6 Pennsylvania dairy farms. J. Dairy Sci. 93:5509–5513.

Glosson, K. M., B. A. Hopkins, S. P. Washburn, S. Davidson, G. Smith, T. Earleywine, and C. Ma. 2015. Effect of supplementing pasteurized milk balancer products to heat-treated whole milk on the growth and health of dairy calves. J. Dairy Sci. 98:1127–1135.

Hill, T. M., H. G. Bateman II, J. M. Aldrich, and R. L. Schlotterbeck. 2008. Effect of consistency of nutrient intake from milk and milk replacer on dairy calf performance. Prof. Anim. Sci. 24:85–92.

Jamaluddin, A. A., T. E. Carpenter, D. W. Hird, and M. C. Thurmond. 1996. Economics of feeding pasteurized colostrum and pasteurized waste milk to dairy calves. J. Amer. Vet. Med. Assoc. 209:751–756.

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Randall, L., K. Heinrich, R. Horton, L. Brunton, M. Sharman, V. Bailey-Horne, M. Sharma, I. McLaren, N. Coldham, C. Teale, and J. Jones. 2014. Detection of antibiotic residues and association of cefquinome residues with the occurrence of Extended-Spectrum b-Lactamase (ESBL)-producing bacteria in waste milk samples from dairy farms in England and Wales in 2011. Res. in Vet. Sci. 96:15–24.

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Stabel, J. R., S. Hurd, L. Calvente, and R. F. Rosenbusch. 2004. Destruction of Mycobacterium paratuberculosis, Salmonella spp., and Mycoplasma spp. in raw milk by a commercial on-farm high-temperature, short-time pasteurizer.  J. Dairy Sci. 87:2177–2183.

Tempini, P. N., S. S. Aly, B. M. Karle, and R. V. Pereira. 2018. Multidrug residues and antimicrobial resistance patterns in waste milk from dairy farms in Central California. J. Dairy Sci. 101:8110–8122.

Urie, N. J., J. E. Lombard, C. B. Shivley, C. A. Kopral, A. E. Adams, T. J. Earleywine, J. D. Olson, and F. B. Garry. 2018. Preweaned heifer management on US dairy operations: Part I. Descriptive characteristics of preweaned heifer raising practices. J. Dairy Sci. 101:9168–9184.

* Esse Calf Note foi incluído como artigo nos Anais do Simpósio da Revista Leite Integral 2019 em Curitiba, Brasil.

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